Reflexões sobre as repercussões da vitória do PS na França

Por Carla Orlandina Sanfelici

Dia 6 de maio os franceses escolheram o novo presidente da República que governara até 2017, e que assume em um contexto de crise europeia.
O PS venceu com 52% dos votos, contra os 48% que obteve o candidato da direita, do UMP. Esse último esteve durante 10 anos no poder, cinco como Chefe da Casa Civil e cinco anos como presidente da República. E apesar das pesquisas que mostravam uma rejeição massiva à pessoa de Nicolas Sarkozy, este não obteve resultados tão fracos como se predizia. Sem contar que 6% da população exprimiram-se através de votos brancos ou nulos.
A volta do PS ao poder não suscita mais a efervescência quando da época de Mitterrand. Efervescência esta que alcançou o nosso Brasil em finalzinho de ditadura, em 1981, e que tanto nos deu esperanças. Muita água passou embaixo da ponte, estamos em um terceiro mandato petista, muitos avanços sociais foram postos em prática, bem ao contrario da França que muito regrediu neste campo, após tantos anos da direita no poder.
Então, desta vez, a vitória do PS não esta mais carregada de tantas aspirações, mas reflete a necessidade de uma mudança por via racional, sem exigir milagres do eleito, pois Hollande esta herdando uma realidade caótica.
Isto fica visível ao constatar que o PS não obteve uma vitória confortável e a maneira que poderá governar depende de como os eleitores se exprimirão nas eleições legislativas dos dias 10 e 17 de junho.
Mesmo que a população francesa estivesse descontente com a maneira de governar de Sarkozy – centralizando poderes e decisões e concedendo privilégios descaradamente – os franceses hesitaram em eleger um candidato de esquerda. Ao considerar o espaço que as ideias da extrema-direita, o Front National, ganharam durante esta campanha presidencial e que foram amplamente difundidas pelo próprio Nicolas Sarkozy e seu círculo mais próximo.
O 2° turno das eleições foi marcado por um endurecimento do discurso do presidente candidato a reeleição, onde este, de maneira quase obscena decidiu seduzir o eleitorado do FN. A extrema direita obteve 18% dos votos que passaram a ser decisivos para a obtenção da vitória.
Desta maneira, a questão da política migratória passou a pesar na balança, ocupando um espaço maior que o necessário no debate. Ressuscitou-se a questão das fronteiras e mesmo surgiu o argumento de rever os acordos do espaço Schengen, que preveem a livre circulação entre membros da Comunidade Europeia. Pesquisas de opinião apontam que 37% da população francesa está de acordo, mesmo que algumas vezes parcialmente, com as ideias do FN, ideias que são incontestavelmente xenófobas e racistas. A crise foi um terreno fértil à expansão das ideias deste partido que encontrou eco dentro do governo Sarkozy, obtendo declarações como as do Ministro da Defesa, que entre os dois turnos da campanha disse que a líder do FN, Marine Le Pen, passou a ser uma parceira fiável e necessária à direita.
A facilidade em evitar a discussão das políticas neoliberais como reais responsáveis da crise, destacou o estrangeiro como o principal vilão, que foi acusado como o culpado de grande parte das dificuldades da sociedade. Este tipo de retórica fez com que a proposta do PS de instituir o direito de voto aos estrangeiros às eleições municipais fosse vilipendiada.
A estratégia de dividir a sociedade atingiu o seu ápice quando o trabalhador foi estigmatizado, a ponto do tradicional desfile do 1° de maio ter sido colocado como uma manifestação desprovida de caráter histórico social.
Onde se reduzia, segundo o presidente em exercício, a seguir as bandeiras vermelhas em detrimento a nacional e, sobretudo respondendo as manipulações dos sindicatos que não representam o “verdadeiro” trabalhador.
É incontestável que este discurso simplista criou um abismo na sociedade. Sociedade conhecida por incessantes lutas, greves que obrigaram o Estado a outorgar tantos avanços sociais. E este abismo é evidente na análise geográfica do resultado eleitoral. O PS ganhou nos grandes centros urbanos, com exceção de Nice, e na região rural ganhou à direita. E de maneira mais surpreendente, nas regiões onde não existem estrangeiros instalados, a adesão às ideias do FN foi grande, com uma votação expressiva. Isso demonstra o quanto existe de infundado na escolha deste eleitorado e que exprime o rechaço do outro, do diferente, do estrangeiro.
Neste contexto de fragilidade política, o líder político do partido do centro, o Modem, na figura de François Bayrou, declarou que as ideias  difundidas durante  a campanha do segundo turno, são incompatíveis com uma República democrática e que, como o Sarkozy encampou as posições do FN, lhe restava votar, a título pessoal, para François Hollande.
No primeiro discurso de Hollande, proferido após a vitória, ele reafirmou que a austeridade não deve ser uma fatalidade; em que as suas críticas à crise europeia são semelhantes às proferidas pela Dilma Roussef. Além disso, tudo indica que Hollande é sensível à política praticada no Brasil, tendo em vista que participou ao Fórum Social Mundial de Porto Alegre e teve a oportunidade de encontrar com Lula.
Dentro das primeiras ações previstas pelo candidato vitorioso está a viagem a Alemanha, para iniciar discussões sobre o “pacto de estabilidade financeira” da Comunidade Europeia que tem asfixiado vários membros da zona euro.
A Europa em crise espera muito da vitória do PS na França. Europa que tem como motor econômico a França e a Alemanha, onde a segunda é inflexível ao que se refere às medidas de austeridade. E bem que a crise seja financeira, ela despertou ideologias xenófobas racistas, não somente na França, mas recentemente na Grécia, onde apareceu com muita força nas eleições. Então, a questão econômica esta intimamente ligada à maneira que será organizada a política de imigração. A crise criou um terreno fértil para que a extrema direita avançasse, com o estrangeiro apontado como o responsável de todas as mazelas que as políticas neoliberais conduziram à beira do caos a França e a Europa.
Por isto tudo a comunidade brasileira instalada na França acompanha com muito interesse o que será posto em prática pelo governo socialista. Existem entre 80 e 90 mil brasileiros na França, grande parte indocumentada formando família, com filhos – muitos nascidos em solo francês. Muitos desses brasileiros atuam em trabalhos penosos, mal pagos e têm dificuldades para receber por não disporem de documentos que possibilitem a abertura de uma conta bancária. Verdade que a realidade brasileira fez com que os brasileiros diminuíssem o fluxo migratório; o que não impede aqueles que já se encontravam na Europa, devido à crise, tenham decidido viver na França, uma vez que essa foi menos afetada pelo contexto econômico, tendo em vista a forte presença do Estado.
Robert Badinter, ministro da Justiça de Mitterrand e responsável pela lei que aboliu a pena de morte, quando consultado qual seria a medida de impacto semelhante a ser aplicada por Hollande, do mesmo peso que a que ele instaurou, respondeu sem hesitar que será o de dar o direito de voto aos estrangeiros nas eleições municipais.
Talvez, visto do Brasil, o voto dos estrangeiros possa parecer infundado, onde o argumento de destinar tal direito deveria ser somente aos que decidem obter a nacionalidade francesa. No entanto, é importante informar que cada vez mais se tornou complexo o processo de aquisição da nacionalidade. Nos últimos cinco anos o governo intensificou as dificuldades e instaurou medidas financeiras coercitivas. Entre outras tantas exigências, cada candidato a aquisição da nacionalidade, abaixo de um certo nível de estudo deve submeter-se a um exame de proficiência do idioma, devendo pagar 110 euros pelo mesmo, sem contar os 55 euros para simples estudo do pedido de naturalização. E tais exigências existem mesmo para os que vivem há muitos anos sobre o solo francês, trabalhando, pagando impostos e mesmo tendo filhos nascidos no território.
Hollande foi questionado pela Rede Educação Sem fronteiras, que auxilia os imigrantes sobre as condições de regularização e tratamento que recebem, e a resposta dada leva a pensar que a discussão está aberta e que existirá transparência na política que será instaurada. Provavelmente, será deixada de lado a meta por volume de expulsões a obter por ano.
E mesmo se existe prudência e limites no discurso de Hollande se nota que existe a vontade de romper com a xenofobia ambiente, buscando, sobretudo, respeitar os direitos humanos.
Muitos dos brasileiros que são pegos em situação irregular têm o passaporte confiscado pelas autoridades francesas, documento este que nem pertence ao cidadão brasileiro, mas ao governo brasileiro. Tal ato é demonstrativo de práticas desrespeitosas entre países amigos. E se a política de imigração deve ser determinada pelo governo francês, onde nenhum brasileiro põe em questão os critérios que serão estabelecidos, isto não impede que se espere o respeito aos direitos humanos, sem espaço para o aleatório.
Ainda sobre o tema da imigração, outro item que demanda um olhar bem atento são os centros de retenção que podem abrigar por até 45 dias, estrangeiros em situação irregular antes de serem expulsos. Estes centros receberam inúmeras vezes menores, situação que foi condenada pelo Conselho Europeu de Direitos Humanos e o Conselho de Direitos das Crianças. Informações apontam para a ocorrência de inúmeros abortos dentro destes centros.
Enfim, o PS elegeu-se com o slogan “A mudança é agora” e os brasileiros instalados na França esperam que os textos de lei respectivos à imigração herdados da era Sarkozy sejam revistos e que agora aja mudança. Mudança necessária para que os brasileiros que aqui se encontram se integrem, construam, vislumbrem um futuro melhor e que os laços de amizade entre a França e o Brasil se fortifiquem.
*Carla Orlandina Sanfelici, integrante do núcleo do PT em Paris, militante da Rede Educação Sem fronteiras e de um dos Coletivos anti-FN.
Fonte: Fundação Perseu Abramo