Declaração final – São Paulo – 2005

Declaração final do XII Encontro

1- Celebrando os 15 anos da fundação do Foro de São Paulo, nesta mesma cidade realizamos nosso XII Encontro, com a presença de 364 participantes de cerca de 150 partidos políticos, entidades e organizações sociais. Participaram os partidos políticos membros da Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Cuba, El Salvador, Equador, Guatemala, México, Nicarágua, Paraguai, Peru, Porto Rico, República Dominicana, Uruguai, Venezuela. Participaram também entidades e partidos convidados da Alemanha, Bélgica, Canadá, Catalunha, China, Espanha, França, Galícia, Itália, Portugal, Suíça e Vietnam. Contamos, além disso, com a participação de representantes diplomáticos de nove países no Ato Político de comemoração do 15o aniversário do Foro, e com a presença do companheiro Luiz Inácio Lula da Silva, Presidente da República Federativa do Brasil.
2- É uma boa ocasião para medir o caminho percorrido através dos 12 encontros que marcaram estes três lustros, desde que, em julho de 1990, convocada pelo Partido dos Trabalhadores do Brasil, a esquerda latinoamericana e caribenha se reuniu para debater e refletir em conjunto, num fórum, os desafios que lhe eram impostos pela realidade e pelo futuro. Transitamos, assim, por um mapa político em mutação ao longo dos anos, além de percorrermos diversos pontos da nossa América Latina, desde a Cidade do México em 1991 (II Encontro) e 1998 (VIII), Manágua em 1992 (III) e 2000 (IX), Havana em 1993 (IV) e 2001 (X), Montevidéu em 1995 (V), San Salvador em 1996 (VI), Porto Alegre em 1997 (VII), e Antigua, Guatemala em 2002 (XI).
3- Quando celebramos o XI Encontro do Foro de São Paulo em Antigua, Guatemala, em dezembro de 2002, a administração do presidente George W. Bush se encontrava no clímax da ofensiva destinada a tirar proveito dos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001. Bush utilizava a retórica da luta contra o terrorismo e a proclamação da guerra preventiva como pano de fundo para tentar criminalizar as lutas populares na América Latina e no Caribe. Valia-se ademais do clima criado para obter do Congresso estadunidense a autoridade que desbloqueava a negociação da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA).
4- Este balanço evidencia que, quando o FSP dava seus primeiros passos – 15 anos atrás – a situação internacional havia se deteriorado gravemente. Os Estados Unidos se afirmavam como potência dominante na pretensão de impor um mundo unipolar, enquanto grande parte da América Latina acabava de sair de um ciclo de ditaduras militares. Exceto Cuba, que resistia heroicamente ao bloqueio imperialista estadunidense, não existia nenhum governo de esquerda: reinavam o neoliberalismo e o “pensamento único”. Desde então, foram múltiplas as agressões do império norteamericano contra os povos do mundo, sua ofensiva guerreirista e militarista no afã de controlar os recursos naturais estratégicos, impor seus interesses econômicos e políticos, e afirmar o seu poderio mundial, como demonstram as experiências do Afeganistão e do Iraque.
5- Mas não foram poucos os planos imperialistas que fracassaram. Os triunfos populares e progressistas arrancaram de suas mãos o controle de importantes países do continente, entre os que se destacam o Brasil, a Venezuela e o Uruguai, juntamente com importantes avanços em outros países do Cone Sul. Na Argentina, o processo iniciado em dezembro de 2001 com a derrocada do governo neoliberal de De la Rúa conclui em maio de 2003 com o triunfo do presidente Néstor Kirchner. Temos que dar o devido valor à negociação da dívida externa argentina, que abre um caminho para outros países enfrentarem as regras impostas pelo FMI.
6- No caso do Brasil, merece destaque a política externa do governo Lula, que defende a inserção soberana do Brasil e da região no cenário mundial. São avanços importantes as políticas sociais do Fome Zero e outras políticas de inclusão social, assim como os progressos na reforma agrária em diálogo com o Movimento Sem Terra. Ressaltamos especialmente a não renovação do acordo com o FMI e o combate implacável à corrupção por parte do governo Lula.
7- O Foro de São Paulo valoriza a infatigável luta do povo chileno e suas organizações de direitos humanos na busca da verdade e da justiça, bem como reconhece os avanços nos processos que levam adiante os juízes de dedicação exclusiva no Chile. Valoriza também o Relatório da Comissão de Tortura e Prisão Política (Relatório Valech), que permitiu importantes avanços na luta pela verdade acerca do horror vivido por milhares de homens, mulheres e crianças nos cárceres e centros de detenção da ditadura de Pinochet. A investigação que desvendou o denominado Caso Riggs, que permitiu descobrir as milionárias operações de corrupção de Pinochet e sua família, desmascaram-no perante a comunidade nacional e internacional não só como principal responsável do terror de Estado, mas também como ladrão de Estado.
8- As dificuldades da política latinoamericana de Bush obedece a dois fatores fundamentais: um é o agravamento da crise política, econômica e social na região. O segundo é a capacidade de luta e construção de alternativas demonstrada pelos povos em toda sua diversidade, mulheres e homens da nossa América Latina e Caribe. Entre as manifestações da crise, ressalta-se a derrocada dos governos de Gonzalo Sánchez de Lozada (Bolívia, 2003), Lucio Gutiérrez (Equador, 2005) e Carlos Mesa (Bolívia, 2005), somando já seis governos neoliberais derrubados pelo movimento popular desde 1997.
9- Quanto à capacidade de luta e construção de alternativas, destacam-se: a resistência da Revolução Cubana frente ao recrudescimento da política de bloqueio e isolamento, a derrota das diversas tentativas de desestabilizar e derrotar a Revolução Bolivariana na Venezuela e o governo constitucional do presidente Hugo Chávez nesse país, o triunfo de Lula nas eleições presidenciais brasileiras de outubro de 2002 e o triunfo de Tabaré Vázquez nas presidenciais uruguaias de outubro de 2004. A vitória da Frente Ampla incluiu as maiorias parlamentares e, neste ano, um triunfo consagrador nas eleições municipais. Igualmente, devemos frisar o avanço da esquerda colombiana nas eleições locais em 2003 e o processo de unidade gestado para as eleições de 2006. No Equador, expressou-se um avanço da esquerda nas eleições locais.
10- Assim, após o XI Encontro, às vitórias já citadas somam-se os resultados favoráveis aos setores progressistas nas eleições do Panamá e da República Dominicana, Chile, El Salvador, Nicará-gua e Venezuela, além de importantes lutas sociais e políticas na área andina: Bolívia, Peru, Equador e Colômbia.
11- O primeiro indício de avanços da resistência contra a ofensiva do governo Bush foi a derrota do desenho original da ALCA, ocorrido na Reunião Ministerial das Américas celebrada em Miami em novembro de 2003; o segundo foi a derrota da tentativa de outorgar à Organização de Estados Americanos (OEA) faculdades para monitorar o “funcionamento democrático” dos países da região, que teria sido um mecanismo intervencionista contra o governo de Chávez na Venezuela; o terceiro foi a derrota da tentativa de impor os seus candidatos favoritos para a Secretaria Geral da OEA, o ex-presidente de El Salvador, Francisco Flores, e o secretário de Relações Exteriores do México, Luis Ernesto Derbez.
12- Constatamos, portanto, que a situação sofreu uma guinada positiva, a América Latina aparece como o continente com maiores possibilidades de mudanças progressistas.
13- Entretanto, a América Latina e o Caribe enfrentam sérios desafios. A situação do Haiti, certamente dramática, exige uma solução política e exige que nos comprometamos a fim de que o povo haitiano avance rapidamente para um exercício real do seu direito à soberania e à autodeterminação, com um decidido apoio internacional frente a suas urgentes carências em matérias de saúde, educação, habitação, obras básicas de infraestrutura e reconstrução ambiental.
14- Denunciamos a pretensão do governo estadunidense de se valer da Colômbia como base e fator de controle e penetração dos seus objetivos imperialistas apelando para o Plano Colômbia e para o Plano Patriota para impor em todos os aspectos a sua política de dominação. O seu objetivo com isso é regionalizar a guerra contra os povos andinos, sufocar a sua luta libertadora, comprometer os avanços na República Bolivariana da Venezuela e continuar os seus ataques contra a Revolução Cubana. Destacamos a iniciativa do Grupo de Trabalho do Foro de São Paulo para uma visita de parlamentares de diferentes países, com o objetivo de impulsionar uma agenda concreta com o objetivo de ajudar a promover a solução política negociada para o conflito armado interno e o acordo humanitário para fazer sentir a solidariedade da América Latina com o povo irmão.
Constata-se claramente a mesma estratégia aplicada no Paraguai, com o pretexto da ameaça terrorista na zona da tríplice fronteira. Essa política é facilitada pela decisão do governo paraguaio de outorgar imunidade a forças militares estadunidenses.
15- Manifestamos nossa preocupação pelo recrudescimento do bloqueio a Cuba por parte dos EUA mediante o propósito de estender pelo mundo a aplicação (aberta ou encoberta) das disposições da lei Helms-Burton.
16- Rejeitamos igualmente as declarações da nova secretária de Estado para este segundo mandato de George W. Bush, Condoleeza Rice, sobre o governo da irmã República Bolivariana da Venezuela, chamando-o de “incômodo para os EUA”, e nos solidarizamos com o povo venezuelano e com o seu presidente – democraticamente eleito e ratificado por plebiscito popular – o comandante Hugo Chávez Frías. Em consequência, manifestamos nossa satisfação pela derrota infligida na OEA recentemente às pretensões intervencionistas dos EUA de querer outorgar a este organismo já bastante desprestigiado o papel de juiz certificador do caráter democrático dos países membros, deixando assim aberta a possibilidade de intervenção no caso de um juízo negativo sobre um ou mais governos.
17- Conscientes de que a integração de nossas nações e povos é uma ferramenta fundamental na luta pelo nosso desenvolvimento e nosso progresso, pela nossa soberania e uma globalização diferente, solidária e respeitosa do interesse dos povos, acreditamos ser indispensável trabalhar intensamente para criar uma nova integração Sul-Sul, e especialmente latino-americana e caribenha, que vá além do estritamente comercial e transcenda para o social, cultural e político. Por isso, mantemos uma firme oposição às manobras do império para nos dividir e impor, por outra via, a sua fracassada ALCA, desta vez via os TLC, que agora pretende com a América Central e os países andinos, desconhecendo a demanda dos povos que exigem consulta popular.
18- Constatamos que, no período transcorrido desde o último Foro, houve avanços na integração regional promovidos pela Argentina, Brasil, Uruguai e Venezuela, cujos governos permitiram aprofundar a integração física e energética da nossa América. Hoje na região sulamericana existem três sistemas de integração em andamento, que possuem um papel importante se forem enquadrados na lógica integral já mencionada: a Comunidade Andina de Nações (CAN); o MERCOSUL, com vários países membros associados, Bolívia, Chile, Peru, Venezuela, Colômbia e Equador, avançando para maiores graus de integração econômica, política e social a se concretizarem em 2006; e a Comunidade Sulamericana de Nações, com grandes projetos de integração de infraestrutura e energia do continente. Destacamos, nesse sentido, as potencialidades do Acordo MERCOSUL-Comunidade Andina de Nações alcançado em 2004, que, com os avanços da oposição no Peru, Equador e Colômbia, contrária à assinatura dos TLC, permitirá a consolidação do projeto de Comunidade Sulamericana de Nações fundado na cidade de Cuzco em 2004, como passo em direção à formação da Comunidade Latinoamericana e Caribenha de Nações.
19- Na região centro-americana, observamos uma deterioração do processo de integração ao quererem diminuir as funções do Parlamento Centro-americano e da Corte Centro-americana de Justiça, fortalecendo o autoritarismo presidencialista, e anulando todas as expressões sociais do Sistema de Integração Centro-americana (SICA). O Foro de São Paulo apoia as iniciativas de integração comunitária defendidas pelos partidos membros, ao mesmo tempo que respalda a luta contra a implantação do CAFTA e o Plano Puebla-Panamá, como expressões de anexação da região aos interesses dos Estados Unidos.
20- O México enfrenta hoje o desafio de alcançar um acordo trinacional para a revisão integral do Tratado de Livre Comércio da América do Norte. Mais ainda, quando os governos do México, Estados Unidos e Canadá pretendem criar a comunidade da América do Norte, cujo primeiro passo é a Aliança pela Prosperidade e Segurança, que não faz mais do que aprofundar as condições econômicas e financeiras de iniquidade que empobreceram essencialmente o México e criar parâmetros no terreno da segurança hemisférica, energética e fronteiriça para criminalizar a migração latinoamericana, homologando-a à luta contra o narcotráfico e o terrorismo. O agravamento da crise social no campo mexicano e a possível ofensiva do poder financeiro estaduniden-se em terrenos como a saúde pública, a energia e a educação, fazem com que o México, hoje mais do que nunca, deva olhar para a América Latina e o Caribe. Saudamos a possibilidade de que nossos irmãos da esquerda mexicana e os setores progressistas estejam em condições de ganhar as eleições presidenciais de 2006.
21- Valorizamos a materialização e a perspectiva da Alternativa Bolivariana para as Américas, que podemos apreciar, em primeiro lugar, nos convênios entre Venezuela e Cuba, mas que também podem ser identificadas no Convênio Integral de Cooperação Energética entre Venezuela e Argentina, na aliança estratégica Brasil-Venezuela, no Convênio Integral de Cooperação Energética entre Venezuela e Uruguai, bem como nos acordos de criação da TeleSur, da PetroSur e do mais recente, assinado pela Venezuela e os países do Caribe: PetroCaribe. A ALBA se propõe, em primeiro lugar, atacar as imensas dívidas sociais que foram se acumulando na nossa região, com base na cooperação, na complementação produtiva, na defesa da identidade latinoamericana e na solidariedade.
22- Declaramos o nosso compromisso de trabalhar, a partir dos nossos partidos, para impulsionar essa nova integração em andamento, cuja agenda deve ser cada vez mais ampliada para atender os interesses dos nossos povos. Queremos que a integração signifique, além de acordos comerciais, uma agenda de complementação produtiva, acessibilidade a mercados regionais e abertura de outros, instrumentos financeiros comuns, complementação física e de comunicações, integração energética, articulação em matéria de defesa, preservação dos recursos naturais, complementação educativa, científica e tecnológica, integração cultural e complementação em direitos trabalhistas e seguridade social.
23- No VI Encontro do FSP, realizado em El Salvador em 1996, afirmamos que “a integração não exclui o interesse nacional” e que “como processo, deve estar encaminhado a alcançar a convergência e complementaridade econômica e social dos países da região”. Sustentamos que “só mediante esquemas de integração subregional e regional será possível alcançar o peso específico que permita negociar com sucesso frente aos blocos econômicos que hoje se consolidam no mundo”. O projeto integrador regional precisa considerar os diversos níveis de desenvolvimento e a heterogeneidade existente na região. Para que a integração seja justa e solidária, estas tarefas deverão estabelecer mecanismos preferenciais, tendo em conta as assimetrias e desigualdades da região. Um princípio importante que deverá ser considerado é o de promover ações para alcançar uma adequada equidade.
24- Justamente por isso, sustentamos que a integração “não pode ficar apenas nas mãos dos governos, devem participar nela ativamente os partidos políticos, os movimentos populares, as organizações não governamentais, os empresários prejudicados pelo neoliberalismo e todos os atores reais, especialmente os verdadeiros produtores de riqueza”. Essa afirmação proferida há quase dez anos reafirma sua vigência à luz dos avanços e limitações existentes nas experiências em desenvolvimento. Na atualidade, continua sendo uma premissa indispensável para a real concretização dos projetos que têm lugar em diferentes regiões da América Latina e no Caribe, em prol de uma verdadeira integração de nações e povos.
25- Denunciamos e rechaçamos o feminicídio, expressão da crescente violência contra as mulheres, como a violência de gênero cuja base é a discriminação e decomposição social produzida pela persistência de uma concepção misógina e paternalista que gerou um novo fenômeno criminalístico nos nossos países, notadamente no México, El Salvador e Guatemala, onde a agressão emocional, econômica, trabalhista, psicológica e física pode chegar inclusive ao assassinato. Consideramos o feminicídio um crime de Estado porque a negligência e indiferença das instituições responsáveis pela justiça e pela segurança, assim como a ausência de ações legislativas e de governo, reproduzem as condições de impunidade. Denunciamos, na mesma linha, a exploração sexual infantil e de gênero que lacera a dignidade da pessoa humana.
26- Por último, este XII Encontro saúda a participação ativa de representantes de entidades, movimentos sociais, parlamentares e pequenos e médios empresários, mulheres e jovens que, em conjunto com representantes dos nossos partidos, trabalharam nas oficinas deste Foro, que assume todas as recomendações, moções e propostas aprovadas nos mesmos, apresentadas no anexo a esta Declaração.
São Paulo, Brasil, 4 de julho de 2005
 
Nota: A delegação do Partido Intransigente, da Argentina, mani-festou sua discordância com a referência feita no texto sobre o governo Kirchner.