Em guerra contra todos

ObamaEm novo livro, Luiz Alberto Moniz Bandeira afirma que os EUA buscam submeter os outros países à condição de vassalos 
Por José Antonio Lima — 27/11/13
Em todas as suas ações, os Estados Unidos estão engajados em preservar ou ampliar sua hegemonia como única potência mundial. Esta é a tese central de A Segunda Guerra Fria: Geopolítica e Dimensão Estratégica dos Estados Unidos – Das rebeliões na Eurásia à África do Norte e ao Oriente Médio (Civilização Brasileira, 714 páginas, R$80), novo livro de Luiz Alberto Moniz Bandeira, um dos maiores especialistas brasileiros no assunto. A seguir, Moniz Bandeira, professor titular aposentado de história da política exterior do Brasil da Universidade de Brasília (UnB), aprofunda alguns dos argumentos de sua tese, entre eles o de que, sem o apoio dos EUA, a chamada Primavera Árabe não teria ocorrido.
CartaCapital: A tese central do livro é a existência de uma segunda Guerra Fria, que consiste na busca, pelos EUA, de um controle global sobre o mundo. É uma guerra sem adversários ou contra todos?
Moniz Bandeira: Que os EUA buscam o controle global sobre o mundo está documentado. O general Colin Powell, chefe do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas, no governo de George H. Bush, recomendou aos EUA impedir a União Europeia de tornar-se uma potência militar, fora da OTAN, a remilitarização do Japão e da Rússia, e desencorajar qualquer desafio à sua preponderância ou tentativa de reverter a ordem econômica e política internacionalmente estabelecida. Em 1992, Dick Cheney, então secretário de Defesa, divulgou um documento no qual estabeleceu que a primeira missão política e militar dos EUA pós-Guerra Fria consistia em impedir o surgimento de algum poder rival na Europa, na Ásia e na extinta União Soviética. A dominação de espectro total significava a ampliação e consolidação da hegemonia planetária dos Estados Unidos. Era o objetivo dos neoconservadores de George W. Bush, endossado por Barack Obama. A espionagem da NSA, da qual tratei também no meu livro Formação do Império Americano, é um instrumento para a conduzir as operações de informação, com o propósito de “facilitar e proteger os processos de tomada de decisão nos EUA, e, em um conflito, degradar os do adversário”. Quando se trata de estabelecer dominação de espectro total, a guerra é contra todos os países, por diferentes meios, para submetê-los à condição de vassalos.
CC: Fala-se muito a respeito da emergência da China como potência. As intrínsecas relações econômicas entre as duas partes podem servir para moderar a rivalidade entre Pequim e Washington?
MB: Sim, as relações econômicas moderam a rivalidade, mas não a eliminam. Grandes corporações americanas entre as quais Boeing, Caterpillar, General Motors, 3M, United Technologies, DuPont, Apple, Qualcomm, Intel Corp e IBM estão a depender do crescimento do mercado na China. E a economia dos EUA, como um todo, depende fortemente do influxo de capitais de outros países, como a China. O Banco Central chinês, em setembro de 2013, possuia reservas da ordem de 3,6 trilhões de dólares. Um calote dos EUA, cuja possibilidade não se pode descartar, abalaria profundamente a China. O governo de Beijing passou a acelerar a estratégia para destituir o dólar do status de moeda de reserva mundial, impulsionando a globalização do yuan. Enquanto o dólar for moeda internacional de reserva, os EUA manterão a supremacia mundial. A economia de “free markets” no estilo que os Estados Unidos querem manter engata os países a um sistema de força, compelindo-os a aceitar dólares sem limites. E há no mínimo cerca de 20 trilhões de dólares, valor muito superior ao PIB americano, em circulação no mundo. A China e demais países têm de comprar esses dólares sem lastro (US Treasury Bond) apresentados como os investimentos mais seguros, porque não há alternativas, e assim eles voltam aos Estados Unidos, para financiar o consumo do povo americano, o déficit orçamentário e suas guerras. E a China quer libertar-se desse sistema, assim como a Rússia, Brasil e outros países.
Existem também fatores geopolíticos que aguçam a rivalidade. Através da rota marítima, ao sul da China, circula cerca de um terço do comércio mundial e a região possui reservas inexploradas de gás e petróleo. A essa região do Pacífico o presidente Barack Obama deu “máxima prioridade” na política externa dos Estados Unidos e lá aumentou sua presença militar, inclusive com o envio de 2,2 mil soldados para o norte da Austrália, o que provocou forte reação da China. Os Estados Unidos temem o rápido crescimento e militarização da China. Porém, nada podem fazer para impedi-lo. Com o desenvolvimento tecnológico e a globalização da economia, a possibilidade de guerras entre grandes Estados virtualmente desvaneceu. E os Estados Unidos, com todo o seu potencial bélico, dificilmente prevaleceriam sobre um país cuja população é cinco vezes maior do que o tamanho da população americana.
CC: O livro afirma que uma das principais táticas dos EUA é a promoção da democracia no exterior. Essa estratégia não teria uma falha intrínseca a ela, uma vez que governos democráticos deveriam ser, em tese, mais suscetíveis às demandas da população e, portanto, privilegiar seus interesses em detrimento daqueles de Washington?
MB: O pretexto dos Estados Unidos sempre foi a promoção da democracia, porém, uma democracia que signifique livre mercado, livre circulação de capitais e de mercadorias, livre câmbio e que eles possam controlar através do seu poder econômico. E a experiência já demonstrou, no Brasil e em toda a América Latina, que os Estados Unidos intervieram, apoiando golpes militares, quando a democracia atendeu às demandas populares, em detrimento dos seus interesses. Agora os Estados Unidos continuam a intervir, mas sorrateiramente, por meio de organizações não governamentais (ONGs), financiadas pela National Endowment for Democracy (NED), Agency for International Development (USAID), Freedom House e outras entidades e fundações americanas, que lavam o dinheiro da CIA e financiam os movimentos para promover a mudança de mudança de regime, sem golpe de Estado. A estratégia agora adotada, baseada nos ensinamentos do professor Gene Sharp, no From Dictatorship to Democracy, e do coronel David Galula é a da “guerra fria revolucionária”, na qual as atividades de insurgência permanecem, na maior parte do tempo, dentro da legalidade, realizando manifestações e provocando medidas a serem denunciadas como violência das autoridades, a divulgação de rumores falsos ou verdadeiros destinados a solapar a credibilidade e a confiança no governo por vários meios, mediante a guerra psicológica, social, econômica e política. A Segunda Guerra demonstra, documentadamente, como esses métodos nas revoltas ocorridas na Sérvia, Ucrânia, Geórgia, bem como nos países da África do Norte e Oriente Médio.
Democracia e liberdade para os Estados Unidos não significam, atualmente, o mesmo que em 1776, quando a guerra pela independência das 13 colônias da Inglaterra começou. Naquela época, para Tom Paine, os Estados Unidos eram o “império da liberdade”, onde havia igualdade perante a lei, igualdade de direitos políticos e igualdade de oportunidades. Com o tempo, tanto os conceitos de democracia e liberdade foram corrompidos. Os Estados Unidos estão a converter-se em uma democracia totalitária. E o que sempre pretenderam foi exportar para outros países, desde que começaram a expandir o “imperialismo da retidão”, não foi a forma de de­mo­cracia mas a democracia de forma, aquela que atendia aos seus interesses econômicos, comercias, políticos e estratégicos.
CC: O senhor afirma que rebeliões dos Bálcãs ao Oriente Médio contaram com o encorajamento dos EUA. Em alguns desses conflitos, entretanto, os EUA se mostraram inicialmente reticentes em intervir, como no Kosovo, e também vacilantes, como no Egito. Como essa posição estadunidense pode ser explicada?
MB: Os EUA não são um país homogêneo. Há profundas contradições internas refletidas na sua política exterior e nas relações exteriores. A grande maioria do povo não queria enviar seus filhos para o Kosovo. A tática adotada, então, foi fazer a guerra desde as altitudes, sem empregar tropas terrestres de modo que os americanos não morressem e as baixas não provocassem protestos domésticos, como acontecera durante a guerra no Vietnã. Os Estados Unidos pretendiam expandir a função da OTAN e dominar a Bósnia-Herzegovina e o Kosovo, pois os Bálcãs se revestem de importância econômica e estratégica, dado ser a rota para a Palestina, Iraque, Irã, o Mar Cáspio e a Transcaucásia, onde as corporações americanas projetavam explorar vastas jazidas de petróleo lá existentes. Quanto ao Egito, a situação era muito diferente, pois o país tornara-se estrategicamente de maior relevância para os EUA. O relacionamento com o Egito, cuja situação não está estabilizada, é muito delicado para os EUA dada a situação de Israel e o conflito na Palestina.
CC: É possível medir quais fatores foram mais importantes nessas rebeliões, os internos ou externos?
MB: Exceto Israel, havia condições domésticas, objetivas e subjetivas, para sublevações em todos os países do Oriente Médio. Corrupção, repressão, elevação do custo dos alimentos, pauperização, exclusão social e desemprego, atingindo sobretudo os jovens, além de outros fatores, corroíam os regimes, cuja estagnação econômica, social e política a crise financeira mundial, iniciada em 2007-2008, agravou ainda mais. Contudo, sem o encorajamento dos Estados Unidos, as revoltas não avançariam nem atingiriam as grandes proporções que tomaram e dificilmente haveriam triunfado, como na Líbia.
O clima psicológico fora criado pelos programas do National Endowment for Democracy (NED). Segundo o ex-diretor da CIA William Colby, muitas operações, antes conduzidas de forma encoberta, poderiam agora ser realizadas abertamente, sem controvérsia, pelas organizações não-governamentais. Elas trabalhariam em coordenação com o Departamento de Estado, a CIA e as embaixadas dos Estados Unidos no país. Esse programa – NED – criado em 1983 pelo Congresso foi executado em quase todos os países do Oriente Médio, com o objetivo declarado era abrir espaço político nos países sob regime autoritários semi-autoritários, ajudando democratas e processo democráticos, bem como construir democracias após conflitos “no mundo islâmico”. Em 2002, o presidente George W. Bush criou, no Departamento de Estado, a Middle East Partnership Initiative (MEPI), a fim de financiar as ONGs americanas, inclusive no Egito, com o fim de apoiar “ativistas políticos e grupos de direitos humanos”. Dois escritórios regionais foram estabelecidos, em Túnis e Abu Dhabi. A MEPI, à qual o presidente Obama deu continuidade, recebeu, de 2002 a 2012, cerca de 580 milhões de dólares destinados a mais de 680 projetos em 18 países e constituiu um dos instrumentos da “agenda de liberdade” de Washington, visando a promover, no Oriente Médio, Caúcaso e em outras regiões o que julgava ser “democracia”. O objetivo era ostensivamente subverter os regimes no Oriente Médio e na África do Norte, mediante o engajamento dos cidadãos no processo político e recrutamento de líderes estudantis, entre 20 e 24 anos, para um programa de 5 a 6 semanas nas instituições acadêmicas dos Estados Unidos. Esses ativistas treinados acenderam o estopim. A oposição, na Síria, foi financiada pelos EUA desde, ao menos, 2005. E, na Líbia, os serviços de inteligência da Grã-Bretanha e da França também ajudaram a deflagração da revolta.
CC: O livro coloca em alguns momentos a “mídia ocidental” como instrumento de guerra psicológica dos EUA. Não seria uma contradição para uma mídia instrumentalizada publicar, por meio de jornais mainstream como The New York Times e The Guardian, informações como as divulgadas pelo WikiLeaks e por Edward Snowden?
MB: Há muitas exceções, na mídia, sobretudo em jornais dos Estados Unidos, Grã-Bretanha e a Alemanha, onde trabalham notáveis jornalistas, que exercem a profissão com a maior independência, embora alguns jornais possam atender às pressões do governo, como aconteceu quando passaram a chamar a resistência no Iraque de insurgência, quando os Estados Unidos e Grã-Bretanha derrubaram o regime de Saddam Hussein. E o fato é que o Army Civil Affairs and Psychological Operations Command (USACAPOC), dos Estados Unidos, e o MI6, ramo externo do Serviço Secreto de Inteligência da Grã-Bretanha usaram e usam a mídia internacional como veículo de desinformação e contra-informação, encobrindo o envolvimento direto e/ou indireto do Ocidente, sobretudo, nos levantes na Líbia e na Síria. O MI6 tem uma divisão dedicada às Operações de Informação, que planeja as operações de guerra psicológica. Uma de suas principais tarefas é plantar, na imprensa, falsas histórias, rumores e desinformação. E a  estratégia para intervir na Líbia consistiu em construir, através da mídia, um imaginário, em que o ditador Muammar Gaddafi estava na iminência de massacrar os civis. A manipulação das notícias pela mídia – BBC, CNN, Al-Arabiya e Al-Jazeera – desinformando e exagerando o número de mortos, foi o que contribuiu decisivamente para criar no Conselho de Segurança da ONU o clima contra a Líbia e o mesmo se tentou contra a Síria. Um dos rebeldes, Qusai Abdel-Razzaq Shaqfeh, da província de Hama, confessou em programa da TV estatal de Damasco que havia atuado como testemunha e fabricado falsas notícias e vídeos sobre eventos para TV Al-Jazeera, com sede em Doha, e colaborado com estrangeiros para armar grupos e atacar as forças de segurança do governo e civis, e, ajudado por profissionais, a montar programas, filmando demonstrações encenadas, para enviar os vídeos aos canais árabes de televisão.
CC: O senhor avalia que os episódios do WikiLeaks e da espionagem da NSA abalam de alguma forma o poder dos Estados Unidos?
MB: Esses episódios não abalam o poder dos EUA, mas arranharam bastante sua imagem e, possivelmente, o prestígio e influência junto na opinião pública de alguns países, já bastante desgastados pelos presidentes George W. Bush e Barack Obama, pelas guerras em que se envolveram e as matanças com drones de civis inocentes, pelo gulag, o campo de concentração de Guantánamo, e pela sistemática violação dos direitos humanos, com soldados americanos brutalizando, torturando e humilhando os prisioneiros em Abu Ghraib, no Iraque.
CC: No governo Obama, diversos analistas avaliam, os EUA estão perdendo influência no Oriente Médio. Isso pode ser visto em países como o Iraque, Egito e, mais recentemente até na crise com Arábia Saudita. Seria este um sinal de que a estratégia de dominação global não está dando certo?
MB: De fato, os Estados Unidos, desde há muitos anos, estão a perder a influência nos países do Oriente Médio. Sua credibilidade sensivelmente se desvaneceu com a política do presidente George W. Bush, à qual o presidente Barack Obama deu continuidade, aumentando ainda mais o descrédito dos Estados Unidos. Washington, atualmente, já não influi sequer sobre Israel e até sobre a Arábia Saudita e as monarquias absolutistas do Golfo. Desde que o general Abdul-Fattah el-Sisi derrubou o presidente Morsi, em 3 de julho de 2013, a Arábia Saudita e as monarquias absolutistas do Golfo Pérsico, travando feroz a luta pela liderança na região, destinaram ao Egito cerca de 12 bilhões de dólares, enquanto os Estados Unidos cortavam a assistência militar da ordem de cerca de 1,3 bilhão a 1,5 bilhão de dólares que lhe concediam desde os anos 1980.
CC: O senhor acha que os EUA podem sofrer do mal classificado por Paul Kennedy como “excessiva extensão imperial” e eventualmente perderem seu status de única potência?
MB: Os Estados Unidos intoxicaram-se com a vitória na Segunda Guerra Mundial e julgaram, após o fim do regime soviético, que seu império ainda poderia durar 300 anos. Porém, o militarismo sempre constituiu o meio pelo qual todos os impérios se suicidaram. Em agosto de 2007, David M. Walker, chefe do Government Accountability Office (GAO), órgão do Congresso americano encarregado da auditoria dos gastos do governo, advertiu que o país estava sobre uma “plataforma abrasante” de políticas e práticas insustentáveis, escassez crônica de recursos para a saúde, problemas de imigração e compromissos militares externos, que ameaçavam eclodir se medidas não fossem em breve adotadas. Sem um estado de guerra permanente a economia dos Estados Unidos deixa de funcionar. O mesmo aconteceu com o Império Romano. Mas não será nenhuma outra potência que derrotará o Império Americano. Ele há de desmoronar, ao longo de algumas décadas, sob o peso de suas contradições econômicas. Os Estados Unidos não podem aumentar, indefinidamente, a dívida pública, que já se tornou impagável, emitir dólares sem lastros para comprar petróleo e outras as mercadorias – commodities e manufaturas – e importar capitais de outros países, mediante a venda de bônus do Tesouro, para financiar o déficit orçamentário, o consumo, que excede a produção, e as guerras que empreende a fim de sustentar a indústria bélica e sua cadeia produtiva, da qual sua economia tanto depende.
Registrado em: Estados UnidosLuiz Alberto Moniz Bandeira
Fonte: Carta Capital